Regulação e Evolução dos Princípios e Normas de Contabilidade

Resenha

Contabilidade
Regulação
Autor

Kléber Formiga Miranda

Data de Publicação

12 de março de 2018

O evento impulsionador da regulação e evolução dos princípios e normas contábeis foi a grande depressão de 1929. Schroeder, Clark e Cathey (2011) mencionam o período pouco após o início da grande depressão como um período de tentativas de melhorias para a contabilidade, onde a New York Stock Exchange (NYSE) e o American Institute of Accountants (AIA) realizaram uma série de reuniões no intuito de discutir problemas relacionados ao interesse de investidores, da NYSE e da AIA.

Os esforços cooperativos entre os membros da NYSE e da AIA foram bem recebidos, contudo o ambiente pós-depressão foi caracterizado por regulação. Por exemplo, foram introduzidas legislações com a exigência de licenciamento de auditores pelo governo federal após um serem submetidos a um exame civil.

Desses esforços foi criada a Securities and Exchange Commission (SEC), com o propósito de administrar diversos atos inerentes aos valores mobiliários. Com poderes previstos pelo congresso, a SEC possuía a autoridade de prescrever princípios de contabilidade e práticas de divulgação de informações contábeis. No período entre 1936 e 1938, debates internos levaram à conclusão de permitir ao setor privado definir o padrão contábil. Com a emissão do ASR nº 4 (Accounting Series Release), conforme Niyama e Silva (2011), decidiu-se que a própria profissão contábil seria responsável pela formulação de princípios contábeis. Esse mesmo documento estabelecia que a SEC só aceitaria demonstrações financeiras elaboradas de acordo com princípios e práticas contábeis aprovados e aceitos pela profissão contábil.

Hendricksen e Van Breda (1999) atribuem o pioneirismo na criação de princípios contábeis à American Association of Accountants – AAA (Associação Americana de Contabilidade). Sob a liderança de professores pesquisadores, com destaque para William Paton, o AAA iniciou em 1936 uma série de publicações relacionadas à criação de princípios de contabilidade.

Na essência, buscavam um acordo quanto à base de considerações fundamentais que tenderiam a eliminar as variações aleatórias resultantes das diferentes abordagens sugeridas por financistas e executivos a respeito do que seria adequado para investidores num determinado momento. Na prática, se buscava eliminar os efeitos causados pela valoração de ativos com base no mercado, ou seja a reavaliação para cima ou para baixo, de acordo com variações de preços e condições econômicas esperadas.

Até então, um mercado com o registro de suas transações não regulado traria desconfiança e descrédito. O processo estocástico de atribuição de valores ao patrimônio das empresas acabava por não refletir a real situação dos negócios. Não havia, portanto, como se trabalhar com projeções e estimativas convincentes como forma de subsidiar a tomada de decisão dos investidores.

Nesse ambiente de extrema desconfiança, Hendricksen e Van Breda (1999) ressaltam a tentativa da AAA em atribuir o custo como base da contabilidade. Essa iniciativa seria um meio para impor uniformidade no sistema contábil, eliminando com o subjetivismo até então vivenciado. Contudo, sob o ponto de vista teórico, a padronização ou uniformidade do sistema contábil apenas engessa o processo, tendendo a valorização da forma como as transações acontecem e não sua essência. Assim, necessariamente não se teria uma boa teoria contábil.

Para o período, a mudança mais significativa foi o objetivo da contabilidade. A contabilidade passou de uma apresentação de informações à administração e aos credores para o fornecimento de informações financeiras a investidores e acionistas. O fato de mudar o direcionamento das informações geradas pela contabilidade permitiu mudanças relevantes na forma como a contabilidade era conduzida e na concepção de princípios contábeis para uma nova realidade.

Destacam-se a redução da ênfase no balanço como demonstração de valores, pois o destaque passaria para a demonstração de resultados, acompanhado de um conceito uniforme de lucro. Considerando os usuários primários estarem, a partir de então, fora da empresa, houve uma necessidade de divulgação integral de todas as nuances das contas reveladas nos demonstrativos agora completos com consequente aumento de notas explicativas às demonstrações.

Havia um cuidado todo especial na divulgação do resultado, possivelmente pela tradição de “ajustar as contas” a mercado discricionariamente. A identificação de suavização da variação do lucro foi consequentemente identificada e combatida. Uma prática defendida por alguns acadêmicos, dentro dessa perspectiva, foi o diferimento do prejuízo. O prejuízo seria classificado no ativo e amortizado com o tempo, tornando o resultado ruim mais ameno ou, até mesmo, demonstrar resultado positivo quando na realidade teve-se prejuízo em determinado período.

Dos fatos até então relatados, observa-se a busca por uniformidade das informações contábeis e combate a práticas danosas às tomadas de decisão por parte, especialmente de investidores e acionistas. Travou-se nesse período (até final da década de trinta) uma batalha conceitual entre empresários e membros de órgãos formados por profissionais contábeis. Os primeiros em prol de uma contabilização mais liberal e, portanto, mais subjetiva e os demais buscando uniformizar e permitir a comparabilidade das informações intra e intercompanhias.

O período pós-guerra foi importante para o desenvolvimento e avanço dos princípios contábeis. Logo depois da segunda grande guerra, a demanda reprimida por bens e serviços fez a economia deslanchar com aumento do emprego e da renda. A classe média passou a aplicar no mercado de ações com aumento expressivo do número de investidores. Em 1940 havia 4 milhões de investidores ao passo que em 1962 já havia 17 milhões.

Aumentou, nessa época, a demanda por informações voltadas a direcionar adequadamente o valor do preço de uma empresa, iniciando a ideia de lucro por ação. O valor do lucro da empresa é uma parte essencial da relação preço/lucro durante a análise de investimentos. Para a contabilidade esse fator tornou-se essencial, pois os investidores naturalmente esperavam que maiores lucros por ação indicaria a melhor empresa para se investir. Logo depois verificaram que a medida do lucro poderia ter diferenças seja por questão de definição ou por questão de substância econômica.

Dentro da confusão sobre o valor do lucro, a AIA se pronunciou indicando que a medida que realmente interessava aos investidores seria a ideia de geração futura de lucros, definida pelo lucro ordinário da empresa. Com base nos conceitos de lucros existentes, as administrações poderiam tentar-se em reconhecer ganhou ou perdas em períodos distintos aos realmente acontecidos. Atualmente chamamos essa prática de gerenciamento de resultados. Essas práticas levaram a SEC e a AIA a buscar uma medida de lucro onde o lucro incluísse todos os ganhos e perdas. Dessa forma, não sobraria espaço para gerenciamento dos resultados pela administração das empresas.

Em consequência desses debates, o AAA se uniu à voz que propunha uma maior comparabilidade das demonstrações contábeis, tendo como principais barreiras a flutuação de preços e a as diferenças entre métodos contábeis para contabilização. Essa postura, porém não significava a defesa da uniformização das informações contábeis por chocarem com o entendimento teórico da contabilidade.

Sob esse aspecto, uniformizar a contabilidade seria tratá-la como uma “fábrica de registros” sem que houvesse qualquer preocupação sobre a real situação espelhada nas transações registradas. Schroeder et al. (2011) acrescentam que em 1959 os métodos de formulação de princípios contábeis foram questionados por não serem provenientes de pesquisa ou baseados na teoria. O fortalecimento dessas críticas desencadeou na criação do Financial Accounting Standards Board (FASB). A missão dada ao FASB era estabelecer e melhorar os padrões de contabilidade financeira, elaborando relatórios para a orientação do público, incluindo os emitentes, Auditores e usuários da informação financeira. O FASB desenvolveu conceitos amplos de contabilidade assim como padrões para relatórios financeiros e melhorou as orientações na implementação dos padrões.

Com a emissão do Statement of Financial Accounting Standards – SFAS (Pronunciamento sobre Padrões de Contabilidade Financeira) o FASB estabeleceu métodos e procedimentos específicos para questões contábeis, oficializando o termo princípios contábeis geralmente aceitos (Generally Accepted Accounting Principles – GAAP). Para o mercado americano utiliza-se o termo “US GAAP”. Esses princípios geralmente aceitos incorporam convenções, regras e procedimentos voltados a estabelecer práticas contábeis aceitas partindo para o detalhamento das operações, esquivando-se, portanto, de uma aplicação genérica para as transações das empresas.

Mesmo com toda evolução dos princípios contábeis sob a responsabilidade do FASB, o órgão sofre críticas como sobrecarga de normas. Pequenas empresas, por exemplo, são destacadas por Schroeder et al. (2011). Para os autores, alguns contadores acenaram para a possibilidade de que um maior nível de disclosure das pequenas empresas resolvesse o problema de um número excessivo de normas, normalmente mais aplicadas ao mercado de capitais.

A contabilidade desenvolvida no mercado americano foi, portanto, permeada por regramentos e avessa à subjetividade dada as ocorrências de gerenciamento de resultados e utilização indevida do poder discricionário dos administradores das empresas. Contudo, escândalos no mercado americano envolvendo grandes corporações, inclusive empresas de auditoria, passaram a supor não ser tão coerente o uso de regras apenas. Ao mesmo tempo em que a subjetividade permite manipulações nos dados, a criação de normas enviesadas geram o mesmo efeito e talvez mais danoso, pois passa a sensação de completeza e confiabilidade das informações prestadas como aconteceu nos escândalos americanos do início dos anos 2000.

De acordo com Schipper (2003) algumas discussões recentes indicam que os Estados Unidos tenham abandonado o sistema baseado em regras em favor de um sistema baseado em princípios. A lei Sarbanes-Oxley, fruto das precauções contra eventuais escândalos ocorridos no mercado americano como já citado, em sua seção 108 propõe um estudo pela SEC para adoção de um sistema baseado em princípios e não em regras. O estudo tem quatro elementos: a) O quanto que um sistema de contabilidade baseado em princípios é possível no mercado americano; b) O tempo necessário para mudar para esse sistema; c) A viabilidade do sistema e como pode ser implementado, e d) Uma análise econômica da implementação de um sistema baseado em princípios.

Da discussão fomentada por Schipper (2003) dois temas emergem como importantes. Primeiramente é proposto que o sistema de informação americano é inadequado por ser baseado em regras e o outro tema trata-se da necessidade infalível da adoção de um sistema baseado em princípios, pois permite o adequado julgamento do exercício profissional.

Até então foi exposta a diferenciação entre o sistema baseado em regras e o sistema baseado em princípios. A forma como são expostas as aplicações de cada sistema sugere que ao adotar um sistema o outro é desconsiderado. Schipper (2003) levanta alguns aspectos reflexivos sobre como uma contabilidade baseada em princípios pode está permeada de regramentos tal qual o sistema baseado em regras.

Para a autora a contabilidade americana já é baseada em princípios e não em regras. Argumenta que as atividades de normatização do FASB são guiadas pelo sua estrutura conceitual, segundo a qual, por exemplo, somente itens que atendem a definição de um elemento (ativo, passivo, receita ou despesa) devem ser relatados nas demonstrações contábeis. Mesmo tendo um aspecto normativo, é certa a relevância para o investidor quando um elemento contábil satisfaz essa premissa.

Ainda assim, requisitos de reconhecimento e mensuração de normas contábeis devem se basear em características qualitativas da informação contábil, já estabelecidos pelo FASB. O conceito abrangente de utilidade da informação, relevância, confiabilidade e comparabilidade por si só já tornam a contabilização bem discricionária. Esse fato faz a autora concluir que, sob esse aspecto, os US GAAP já são baseados em princípios.

A busca por um sistema discricionário onde a realização de ganhos perpasse pela conceituação ampla de receita, implicará numa infinidade de padrões contábeis para reconhecimento de receita. O projeto do FASB para reconhecimento de receita é a eliminação dos conflitos existentes entre a realização do lucro e os conceitos de ativo e passivo dispostos em seus dispositivos normativos.

Os achados de Agoglia, Doupnik e Tsakumis (2011) se alinham a Schipper (2003) quando expõem a fragilidade do comitê de auditoria quando gestores são mais propensos a informações baseadas em princípios. Os autores denominam o processo baseado em regras como mais preciso e o baseado em princípios de menos precisos. Essa definição já indica o sentimento dos autores quanto a utilização de um sistema contábil baseado em princípios. Ao final os autores recomendam alguns cuidados na adoção desse sistema e orientam legisladores quanto a abertura para processos difíceis de serem auditados.

Uma forma de ilustrar como os princípios são utilizados na definição de normas e que a amplitude dessas regras pode configurar o padrão americano como baseado em regras é através da contabilização de dois casos hipotéticos quanto a combinação de negócios e mensuração a valor justo de instrumentos financeiros.

Na combinação de negócios, como tratar a diferença entre o valor contábil e o valor de compra da adquirida? Baseado nos conceitos de comparabilidade e relevância, combinados com evidências empíricas, o FASB emitiu os SFAS nº 141 e 142 indicando a o reconhecimento do ágio da aquisição como ativo, avaliado a valor justo e sujeito teste de recuperabilidade ao invés de amortização periódica. No outro caso, mensuração de instrumentos financeiros, O FASB se alinha a ideia de adoção do valor justo como principal base de valor. Contudo, pode utilizar-se outras bases quando necessário.

Em ambos os casos, Schipper (2003) argumenta que o US GAAP baseia-se em princípios. Mesmo num ambiente normatizado, as normas decorrentes dos pronunciamentos do FASB são baseadas em conceitos contábeis, premissas e informações empíricas. Entende-se, pois, que o padrão contábil americano já é baseado em princípios e não em regras. O que se busca é retirar da gestão a maior parte possível de discricionariedade.

Assim, alguns aspectos são importantes com o detalhamento normativo dado pelo FASB, ou seja, alguns fatores serão melhores ao possuírem maior ênfase nos detalhes das operações, normatizando-as. Porém o plano de fundo para essas normatizações deverá ser os princípios decorrentes da teoria contábil e das experiências de mercado vivenciadas.

Para Schipper (2003), nesse formato haverá maior comparabilidade das informações, já que será possível identificar operações similares nos detalhes das operações normatizadas pelo FASB. Aumenta-se, também, a verificabilidade com base no aumento do consenso das medidas. Quando se estabelece uma base detalhada de procedimentos, o conhecimento comum entre preparadores e auditores fica mais próximo, portanto a incidência de diferenças é minimizada.

Outros dois aspectos tratados por Schipper (2003) enaltecedores do padrão US GAAP são a redução da possibilidade de gerenciamento de resultados e facilitação para fiscalizadores e/ou reguladores.

O gerenciamento de resultados acaba sendo inibido quando se tem um detalhamento dos procedimentos. Pesquisas empíricas citadas por Schipper (2003) identificam que a orientação detalhada de procedimentos reduz os ganhos da gestão antes obtidos com julgamentos da administração. Quanto à fiscalização e o contencioso observa-se a redução do trâmite pós-litígio, pois tanto auditores quanto os elaboradores dos demonstrativos contábeis possuem orientações claras e precisas do esperado para cada operação. Há também a redução dos próprios litígios explicada pela mesma situação de conhecimento comum sobre os registros a serem realizados para cada transação.

Do exposto, não se tem uma definição clara sobre qual tratamento a ser dado à contabilidade seja em ambiente de regulação ou em ambiente discricionário. Discutiu-se inicialmente a discricionariedade existente no período pré-crash levando a informações contábeis fora do contexto real das empresas. O período pós 1929 foi marcado por regulação dos parâmetros contábeis, exigindo-se a criação de princípios norteadores para reconhecimento, mensuração e divulgação de informações. Também nesse período houveram críticas por afastar a contabilidade de sua teoria e de fundamentos empíricos.

Hodiernamente busca-se um ambiente onde cada país convirja para um modelo contábil alinhado aos demais países, mantendo sua autonomia e preservando as particularidades da sua região. Nesse contexto ressalta-se a preocupação com a comparabilidade das informações, pois fatos iguais podem ter julgamentos diferentes e, portanto, resultados diferentes entre empresas. Schipper (2003) nos traz uma reflexão importante, pois atribui às normas do FASB uma característica de normas baseadas em princípios quando o IASB trata essencialmente os seus pronunciamentos de forma mais genérica sem especificar detalhadamente as operações como faz o mercado americano.

Portanto permanece o questionamento: qual dos formatos é mais benéfico para a teoria contábil, o modelo FASB ou IASB? Ou ainda: É possível dissociar a regulação de uma contabilidade baseada em princípios?


Agoglia, C. P., Doupnik, T. S. & Tsakumis, G. T. (2011). Principles-Based versus Rules-Based accounting standards: the influence of standard precision and Audit Committee strength on financial reporting decisions. The Accounting Review, 86(3), 747-767.

Hendricksen, E. S. & Van Breda, M. F. (1999). Teoria da contabilidade. São Paulo: Atlas.

Niyama, J.K. & Silva, C. A. T. (2011). Teoria da contabilidade. (3\(^{a}\) ed). São Paulo: Atlas.

Schipper, K. (2003). Principles-based accounting standards. Accounting Horizons, 17(1), 61-72, 2003.

Schroeder, R. G., Clark, M. W. & Cathey, J. M. (2011). Financial accounting: theory and analysis. (10\(^{a}\) ed). New York: John Wiley & Sons.


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