Fluxo de Caixa, Lucro e Accruals

Resenha

Contabilidade
Accruals
Autor

Kléber Formiga Miranda

Data de Publicação

24 de agosto de 2019

A teoria contábil possui, dentre seus principais objetivos, a apuração e divulgação do lucro contábil. Embora pareça de fácil compreensão, o lucro possui diversas conceituações e perpassa pela conceituação dos demais elementos contábeis. Contudo, não se trata apenas de um desafio conceitual, mas de uma diversidade de entendimentos nos mais diversos países. Esse contexto fortalece a discussão sobre a formação do lucro e como estes podem ser mensurados em prol dos interesses de seus elaboradores em detrimento da revelação do real desempenho da empresa. (Coelho & Carvalho, 2007).

Observa-se a importância do lucro para a relação entre a empresa e os demais agentes envolvidos nas suas operações, pois, conforme Sunder (2014) a firma constitui uma fonte de renda para cada agente participante. A participação em uma firma se deve à expectativa de retorno superior a contribuição de cada agente em proporção maior comparada a aplicação dessa contribuição em outros investimentos. (Sunder, 2014).

A expectativa de retorno é mensurada por meio da contabilidade, baseada em critérios de mensuração diversos com base no momento do reconhecimento de receitas e despesas. Dessa forma, a apuração do lucro econômico pela contabilidade gera a necessidade de reconhecimento de receitas e despesas no momento de sua ocorrência, independentemente da ocorrência de movimentação financeira. Esse procedimento, denominado de regime de competência, provoca uma diferença entre o lucro líquido e o fluxo de caixa líquido.

Dechow, Ge e Schrand (2010) apresentam um conceito de qualidade de lucros focado na especificidade da tomada de decisão. Para as autoras uma qualidade mais elevada nos lucros depende de mais informações sobre as características de desempenho financeiro de uma empresa, pois são relevantes para uma decisão específica feita por um tomador de decisão específica.

Se espera, assim, resultados considerados como qualificados para tomadas de decisão. Dechow e Schrand (2004) avaliam a qualidade dos lucros, sob a perspectiva dos analistas. Os objetivos da análise financeira são avaliar o desempenho da empresa e, com base nesta análise, determinar se o preço atual das ações reflete o valor intrínseco da empresa. Em outras palavras, procuram identificar se os números revelados pela contabilidade são bons indicadores de desempenho futuro.

Contudo, a adoção do regime de competência permite o desencontro entre o reconhecimento da receita e o seu efetivo recebimento, assim como acontece entre despesas e contas a pagar. De acordo com Martins (1999), como ambos os fluxos financeiros não acontecem simultaneamente, o regime de caixa puro e simples produziria distorções enormes na mensuração do quanto se está ganhando ou perdendo nas operações. O regime de competência permite reconhecer os resultados com base no período de ocorrência do resultado.

A utilização do regime de competência evita a distorção causada, por exemplo, por um gestor quando efetua a venda em um período com concessão de prazo para recebimento. Se o resultado for mensurado com base no caixa (regime de caixa), ou seja, quando do efetivo recebimento, outro gestor poderá ter assumido o cargo o bônus pela venda ficaria com o segundo gestor. Pelo regime de competência, o bônus cabe ao gestor efetivamente realizador da operação, portanto aquele responsável pela venda do produto.

Para Dechow, Kothari e Watts (1998) o lucro ocupa uma posição central na contabilidade. Trata-se do resumo da contabilidade por meio da medida de desempenho de uma empresa. Apesar de modelos teóricos valorizarem os fluxos de caixa, o lucro contábil é amplamente utilizado na valorização das ações e para medir o desempenho em contratos de gestão e de dívida.

Considerando a discussão até então proposta, é possível identificar a predileção pela avaliação do lucro contábil com base no princípio de competência, ao invés do regime de caixa. As vantagens do regime de competência se concentram no fato de representar melhor o resultado de cada período, além de incluir em sua mensuração a expectativa de caixa futuro. As desvantagens do regime de competência residem na apropriação indevida de resultados, dada a subjetividade na apuração do lucro e no pressuposto teórico de utilidade do gestor.

O lucro contábil foi incorporado no modelo de avaliação de empresas elaborado por Ohlson. Dechow, Hutton e Sloan (1999) avaliaram implicações empíricas do modelo de Ohlson confirmando a proposição da influência dos lucros residuais no valor da empresa captado na previsão dos analistas, mesmo sendo relacionados às previsões de curto prazo.

Assim, não há como dispensar a análise sobre o lucro evidenciado na contabilidade, sobretudo quando se confirma sua capacidade em subsidiar decisões com base em expectativas futuras. Contudo, é importante se discutir sobre a sua formação e possível manipulações por gestores.

O poder de alteração do resultado decorre das acumulações discricionárias (discretionary accruals), assim descritas pela acumulação de valores aderentes aos critérios de reconhecimento no resultado, mas sem gerar caixa ou equivalentes. A discricionariedade dos gestores não é caracterizada, todavia, como fraudes. Trata-se da aplicação do julgamento de gestores com implicações nas demonstrações contábeis em decorrência da atividade natural do negócio.

Jones (1991) ao estudar indústrias americanas durante o período de isenção na importação verificou haver gerenciamento de resultados por parte das empresas para se enquadrarem dentro de tal política. O estudo analisou hipóteses, quais sejam: (a) os incentivos conflitantes, onde previa que, por exemplo, credores permitiriam a alteração ou anulação de contratos durante a isenção, pois os resultados menores desse período seriam compensados com situações favoráveis futuras; (b) o free-rider problem, referente a uniformização de procedimentos pelas indústrias durante o período de isenção para manutenção equânime dos resultados e, (c) os tipos de investigação, pois o ITC – International Trade Commission normalmente requeria informações dos últimos cinco anos e com previsão de sanções para faltas graves, os gestores poderiam preferir opções com menores sanções, em detrimento, inclusive, de sua remuneração.

Esse contexto provocou a discussão sobre a qualidade dos lucros com base no conhecimento dos accruals embutidos nos resultados reportados pelas empresas. DeFond (2010) demonstra em sua pesquisa os interesses pela qualidade do lucro, expondo como seus determinantes as duras acusações da SEC – Securities Exchange Comission quanto a fragilidade da contabilidade em conter a discricionariedade indevida na apuração de lucros, a adoção do modelo de Jones como proxy para identificação de gerenciamento de resultados e a implantação de normas internacionais de contabilidade.

DeFond (2010) também relaciona a busca por proxies de retornos anormais como meio para difundir o interesse na qualidade do lucro. Outros fatores como qualidade na auditoria, controles internos e reconhecimento de perdas em tempo hábil também compõe o portfólio de mecanismos para identificação de qualidade de lucros nas pesquisas. A grande importância dessas pesquisas, conforme DeFond (2010), é a obtenção de uma melhor compreensão sobre os impactos da qualidade dos lucros nas tomadas de decisão.

A mensuração da qualidade dos lucros foi proposta em modelos específicos como em Dechow e Dichev (2002) cujo foco foi proporcionam uma forma alternativa para obter medidas de qualidade de accruals. Os resultados da pesquisa indicaram uma forte relação negativa entre a qualidade dos accruals e persistência do lucro. Assim, para as empresas a parcela maior de accruals do resultado atual é um mal indicador de lucros futuros, implicando na menor persistência de lucros.

A avaliação de qualidade de lucro com base em accruals ou na relação com a sua aceitação pelo mercado não são suficientes para determinar a importância do lucro para as tomadas de decisão. Para Dechow e Schrand (2004), o uso de lucro em modelos de avaliação pode ser teoricamente justificado, porém a questão crucial é se os analistas estão em situação favorável para previsões ou se a previsão se baseia na expectativa de caixa futuro. Os próprios autores já demonstram ser o modelo baseado em lucros mais eficiente, comparado aos modelos baseados em fluxos de caixa.

Por fim, considera-se a relação entre lucro, fluxo de caixa e accruals uma ferramenta importante para a tomada de decisões econômicas. A formação do lucro das empresas é repleta de facetas contábeis voltadas a qualificar a informação prestada aos usuários, contudo podem ser prejudiciais quando utilizados de forma indevida. Portanto a sequência lógica iniciada com o lucro como indicador de fluxo de caixa e os accruals como parte do lucro não realizado em caixa podem determinar a confiabilidade de uma empresa. Assim, como é possível gerar credibilidade no lucro mesmo contendo accruals?


Coelho, A. C. D. & Carvalho, L. N. (2007). Análise conceitual de lucro abrangente e lucro operacional corrente: evidências no setor financeiro brasileiro. BBR – Brazilian Business Review, 4(2), 119-139.

Dechow, P. M. & Dichev, I. D. (2002). The quality of accruals and earnings: the role of accrual estimation errors. The Accounting Review, 77(4), 35-59.

Dechow, P. M., Ge, Weili & Schrand, C. M. (2010). Understanding earnings quality: a review of proxies, their determinants and their consequences. Journal of Accounting and Economics, 50(2-3), 344-401.

Dechow, P. M. & Schrand, C. M. (2004). Earnings quality. Charlottesville (Virginia): CFA Institute.

Dechow, P., Hutton, A. & Sloan R. (1999). An empirical assessment of the residual income valuation model. Journal of Accounting and Economics, 26(1-3), 1-34.

Dechow, P. M., Kothari, S. P. & Watts, R. L. (1998). The relationship between earnings and cash flows. Journal of Accounting and Economics, 25(2), 133-168.

DeFond, M. L. (2010). Earnings quality research: advances, challenges and future research. Journal of Accounting and Economics. 50(2-3), 402-409.

Jones, J. J. (1991). Earnings management during importe relief investigations. Journal of accounting research. 29(2), 193-228.

Martins, E. (1999). Contabilidade versus fluxo de caixa. Caderno de Estudos da Fipecafi, 20, 1-10.

Sunder, S. (2014). Teoria da contabilidade e do controle. São Paulo: Atlas.


De volta ao topo