Evolução Histórica e Arcabouço Teórico da Contabilidade
Resenha
A informação contábil deve alterar o estado da arte do conhecimento de seu usuário em relação à empresa, permitindo interpretações, uso em soluções de problemas e, por fim, ratificando ou alterando a opinião sobre as atividades empresariais (Yamamoto & Salotti, 2006). Essa conceituação revela o ponto chave para a evolução histórica da contabilidade e, consequentemente, de sua base conceitual. Especialmente entre meados do século XIX e início do Século XX a demanda por informação contábil aumentou consideravelmente, dada a demanda por novas tomadas de decisão.
Revela-se a abordagem sobre a teoria da contabilidade e do controle proposta em Sunder (2014) para o qual três ideias centrais são importantes para o entendimento da contabilidade e do controle nas organizações: a) todas as organizações são conjuntos de contratos entre indivíduos ou grupos de indivíduos; b) a provisão de informação compartilhada entre as partes contratantes ajuda a desenhar e a implementar esses contratos, e; c) o controle nas organizações é um balanceamento ou um equilíbrio sustentável entre os interesses de seus participantes.
Ao expor a empresa como um conjunto de contratos é demonstrada a necessidade de informações para cada parte do contrato avaliar a sua continuidade nessa transação. Para entender melhor essa afirmativa faz-se necessário explicar a diferenciação entre o modelo econômico neoclássico e o modelo da firma para emergir a demanda pela informação contábil. No modelo neoclássico o mercado autorregulado não necessitaria de informações para se manter contínuo, pois a oferta e demanda por insumos e produtos se ajustariam sem interferência da empresa – nesse caso um mero participante do mercado. O modelo contratual da firma demonstra a importância da empresa no contexto econômico, especialmente por esclarecer o conjunto de interesses em volta da rede de contratos na qual está envolvida.
Dessa forma, a empresa passou a ter papel essencial no contexto econômico, pois o atendimento dos interesses de cada agente no contrato definiria a continuidade do meio econômico existente. Cada agente atua, para a teoria contratual da firma, sob o pressuposto da racionalidade, portanto dentre as opções disponíveis seria escolhida aquela com melhor retorno para o agente, melhorando sua participação na relação contratual.
Conforme Lopes e Martins (2005), a firma clássica não tinham problemas de informação, pois todos os agentes envolvidos tinham acesso ao mesmo conteúdo informativo sem distinção. Na visão ideal da firma a obtenção de informações não seriam problemas para os agentes já que todos teriam acesso à mesma base informacional. Porém, essa situação difere da realidade empresarial, onde se tem diferenças informacionais entre agentes e nessa diferença onde surge a importância da informação contábil.
Cada agente possui uma contribuição na rede contratual constituinte da firma. A contabilidade mensura essa contribuição por meio de métodos contábeis e controles desenhados especificamente para esse fim. Com base nos valores mensurados, cada agente pode avaliar a sua eficiência no contrato e a viabilidade de permanecer ou requerer concessões para sua permanência na firma.
O papel da contabilidade é expor, para cada agente, informações para que possam avaliar se o valor contratado e o valor efetivamente recebido ou a receber são compatíveis. Dessa forma, um determinado agente como o acionista, por exemplo, não está obrigado a contribuir com mais recursos, por sua vez um credor pode requerer informações sobre suas recompensas em relação ao que está aplicado na firma. Assim, a contabilidade é competente para gerar informações quanto aos recursos ingressados e retirados da firma, seja de um agente para ele próprio ou de agente para outro agente.
Caso um agente deseje desocupar sua posição na firma, espera-se, quando os contratos permitem, a venda desse lugar para outros agentes interessados em ingressar nos termos atuais ou novos termos daquela participação. São exemplos os fornecedores com contrato exclusivo de fornecimento e os acionistas. Ambos podem repassar seus direitos sobre a firma para terceiros. Esse terceiro, por sua vez, precisar de informações sobre a relação contratual na qual irá ingressar. Mais uma vez a contabilidade atua como meio de informação para a decisão de ingressar ou não na firma. Ressalta-se que a saída de uma agente pode desestabilizar a firma como um todo, portanto é comum outros agentes tentarem cobrir o espaço deixado pelo remanescente com vistas à sua própria utilidade na participação naquela firma.
Dentre os contratos com os quais a firma opera, o contrato com a gestão é o mais peculiar. Ao gestor cabe estabelecer o leiaute de implementação dos contratos da firma, contando com suas habilidades gerenciais. Ao gestor cabe contatar com outros agentes tendo que atender a firma na qual está contratado. Assim, há uma dificuldade em mensurar o valor se sua participação na firma.
Em primeiro lugar por ocupar a forma de capital humano e seus serviços para a firma serem transmitidos por meio dessa fonte de capital inalienável e fisicamente impossível de se separar de seu proprietário, dificultando a demonstração da sua contribuição para a firma.
Depois, a qualidade e fluxo de serviços dos gestores são difíceis de mensurar. Atividades mensuradas por hora ou por tarefa são facilmente absorvidas pela mensuração contábil, mas atividades gerenciais divergem dessas. O tempo dedicado ao trabalho, por exemplo, não reflete a real contribuição do gestor, pois o tempo fora da empresa pode gerar novos contratos para a firma ou melhorar a relação com os existentes.
Por último, a posição central ocupada pelo gestor lhe dá a condição de aproveitar todas as informações a sua disposição para favorecimento próprio, constituindo-se um problema de seleção adversa. A seleção adversa é a oportunidade que os gestores tem de utilizar as informações obtidas sobre o ambiente de trabalho em maior proporção que os demais agentes, especialmente os acionistas.
Para esses problemas de assimetria informacional entre os agentes com a gestão da empresa, a contabilidade age na remuneração dos gestores. Normalmente, o conflito entre os interesses da gestão e os interesses da firma (conflito de agência) é reduzido com a vinculação da remuneração dos gestores com os resultados da empresa. Dessa forma, a maximização do gestor tenderá a privilegiar todos os agentes envolvidos na firma e não apenas a sua maximização.
A definição e mensuração dos interesses dos gestores nas firmas ainda assim é complexa, tendo em vista a suas preferências contratuais. As preferências contratuais incluem variáveis pecuniárias como salários, bônus, benefícios, dentre outros e outras não pecuniárias como status, oportunidades de crescimento, riscos, desafios, flexibilidade no trabalho. A situação se agrava quando há gestores intermediários uma vez que nem todos os recursos transitam sob seu domínio. À contabilidade cabe agir de forma gerencial para promover o direcionamento do real desempenho de cada agente na empresa como forma de remunerá-lo coerentemente sem prejudicar, portanto, o desempenho da firma.
Lopes e Martins (2005) destacam que o lucro da empresa é influenciado por fatores diversos e não apenas pelos esforços do administrador. Fatores ambientais, econômicos e sociais podem explicar o desempenho da empresa. Assim, como mensurar a real contribuição do gestor no desempenho da firma, especialmente quanto à determinação de medidas de performance e remuneração.
O contexto até agora abordado permite a reflexão sobre o papel da contabilidade no emaranhado contratual da firma, objetivando atender aos interesses de todos os agentes quanto à revelação informacional dos direitos de cada um na firma. Dentre esses contratos, delimitou-se como especial o realizado com gestores por ter características específicas como a possibilidade de participar da maioria das relações entre os agentes, obtendo mais informações que os demais. A partir de agora serão discutidos a forma como os lucros são formados, pois constituem a principal base para remuneração dos gestores. A discussão correrá considerando o lucro devidamente mensurado e o lucro gerenciado para fins específicos.
Antes de entrar no mérito da mensuração do lucro, é importante resgatar o conceito de accountability. O termo significa prestação de contas responsável, denotando, para o caso da relação entre gestão e acionistas, que o resultado apresentado pelo gestor represente fielmente o acréscimo residual obtido pela firma em determinado período. Cada agente espera da relação contratual com a firma retornos de sua contribuição excedentes aos de outro investimento. Porém, a mensuração do lucro da firma possui diversas formas de ser mensurado.
A contabilidade confere ao lucro dos acionistas uma atenção especial, pois esses tem o direito de recursos residuais. Isso significa que após todos os agentes terem sua contribuição direcionada, sobra a parte conferida aos acionistas. Todas as demais partes possuem uma contribuição direta de mensuração. Fornecedores e empregados, por exemplo, estipulam valores prévios para transacionar com a firma. Os acionistas precisam satisfazer todas as relações contratuais para então conhecer o seu retorno. Do retorno apurado, apenas uma parte é revertida diretamente, em forma de dividendos aos acionistas. A outra parte é utilizada para reinvestimento nas empresas.
Os gestores possuem dependência parcial quanto ao lucro da empresa, mas sua remuneração está normalmente vinculada a este. Tendo poder de operar a firma e sua contabilidade a discricionariedade do gestor pode tornar a informação contábil enviesada na medida em que pode gerenciar o lucro em seu favor. Dentro do modelo contratual da firma, a contabilidade exerce a função de informar a todos os agentes sobre suas contribuições e resultados com o propósito de tranquilizar a todos, reduzindo os conflitos.
Contudo, um baixo lucro pode significar aspectos diferentes: resultados de má gestão, contratos desfavoráveis ou má sorte. Independente do motivo, a informação relatada a todos os agentes é de não continuidade da empresa. A decisão racional seria buscar outro investimento e afastar-se do atual. Ainda assim, se todos concordam que o lucro ruim advém de fatores transitórios, podem optar em permanecer com o contrato atual na expectativa de melhores resultados futuros. Quando o resultado é decorrente da má gestão não há alternativos senão a de dissolver a empresa ou reparar os danos de forma consistente.
Jensen e Meckling (1976), dentro da abordagem conceitual da firma, indicaram a visão utilitarista e racional do gestor ao discutir conflitos de agência. Para os autores, dificilmente o gestor evidenciaria um mal resultado decorrente de sua gestão. Seria preferível atribuir os maus resultados a outros fatores ou, até mesmo, gerenciar o resultado em seu favor. Seja para obter bônus mesmo em período ruim para a empresa, seja para retratar um falso resultado positivo e garantir sua permanência no cargo. Assim, a natureza humana, utilitarista e racional, conduz os indivíduos a maximizarem sua função de utilidade. Esse conceito justifica a motivação dos gestores em maximizar sua função em detrimento do resultado da firma.
Um exemplo desse contexto de conflito de agência é relatado por Huizinga e Laeven (2012) ao examinarem os balanços dos bancos americanos durante a crise hipotecária. Os resultados da pesquisa sugerem uma superavaliação dos ativos e distorções das informações, mascarando a real situação dos bancos. Ao final sugerem haver descumprimento de normas contábeis e indicam a melhoria da contabilização com mensuração dos títulos a valor justo. Ao mesmo tempo alertam para o incentivo à arbitragem de valores mensurados dessa forma no sentido de ocorrerem julgamentos indevidos de valor em favorecimento às firmas.
Dessa forma, a contabilidade precisa adotar meios para gerar a credibilidade que lhe é requerida pelos agentes componentes da firma. Hodiernamente, o mundo corporativo se engaja no processo de convergência de normas contábeis. Essa empreitada, em nível global, enfrenta diversas restrições de cunho econômico, cultural e até de autonomia das nações. Contudo, se esperam novos padrões contábeis voltados à qualificação da informação contábil e a consequente redução de custo na compreensão de demonstrativos de empresas localizadas em países diferentes e redução de assimetria entre os agentes.
Barth, Landsman e Lang (2008) propuseram avaliar se a adoção do padrão contábil internacional emitido pelo IASB estaria associada à maior qualidade de informação contábil. A proposta é oportuna e fundamenta-se a proposta do IASB de criar um padrão contábil aceito internacionalmente pelo sua elevada qualidade informacional. A adoção de contabilidade baseada em princípios proposta pelo órgão internacional tende a gerar informações de maior qualidade, aliado a intenção de se limitar a gestão oportunista na mensuração de valores contábeis, bem como na mudança do sistema informacional por meio de uma aplicação mais rigorosa. Esse contexto conduz ao entendimento de que o padrão contábil emitido pelo IASB passaria a propor informações contábeis melhores comparadas ao padrão doméstico.
Todavia, dois aspectos são sugeridos como contrários a essa afirmativa. Primeiramente, o padrão doméstico poderia absorver melhor a realidade da empresa. O padrão do IASB por ter o caráter geral internacionalmente poderia não sugerir o reflexo proposto pela norma local. Assim, a abertura dada pelo IASB no sentido de generalizar as contabilizações tende a deixar o ambiente mais discricionário e, portanto, suscetível a maiores tentativas de gerenciamento de resultados.
Outro aspecto é a necessidade de criação de incentivos para institucionalização dos IAS nos países. Países onde prevalece o direito comum possui melhor afinidade com as informações contábeis emitidas pelo IASB, contrariamente aos países code-law, como é o caso do Brasil.
Em relação ao ambiente econômico, as empresas podem adotar IAS para se adaptarem preventivamente às obrigações futuras de adoção. Além disso, pesquisas mostram que qualidade da informação contábil está melhorando com o passar do tempo, independente do padrão contábil adotado. Dessa forma, esses aspectos foram considerados em Barth et al. (2008), constituindo limitações para os resultados apresentados.
As métricas para definição da qualidade da informação contábil consistiram em gerenciamento de resultados, reconhecimento oportuno de despesas e relevância de valor (value relevance). A proposição é de empresas que adotam o padrão IASB e produzem lucro contábil de qualidade, demonstram menor gerenciamento de resultado, melhor reconhecimento de perdas oportunamente e maior relevância do lucro e do valor contábil.
Quanto ao gerenciamento de resultados, esperava-se suavização dos lucros (earnings smoothing) e gerenciamento para resultados positivos. Portanto, foram avaliados accruals e fluxos de caixa para identificar o gerenciamento de resultados propostos na pesquisa.
Pesquisas pretéritas citadas em Barth et al. (2008) não identificaram mudanças significativas após adoção do IFRS em seus países. Os resultados demonstraram pouca diferença seja quando se avalia o gerenciamento de resultados e o custo de capital, por exemplo. Outros resultados contrastam ao identificar em empresas alemãs um padrão de remuneração com informação contábil mais relevante após a adoção do padrão contábil do IASB.
Os resultados gerais da pesquisa de Barth et al. (2008) sugeriram haver melhorias, considerando o período pré e pós-adoção dos IASs, nas empresas que adotam o IAS. Contudo esses resultados podem resultar de fatores não controlados pela pesquisa. No geral, a qualificação da informação contábil foi percebida quando se identificou menor gestão de resultados, reconhecimento oportuno de despesas e maior relevância da informação contábil.
A importância da informação contábil não pode, entretanto, ficar restrita a adoção de padrões contábeis, mesmo se reconhecendo a seriedade como são formulados os normativos. Considerando o papel da informação contábil no ambiente da firma, os agentes deveriam se unir em prol de decisões mais eficazes, favorecendo a continuidade do sistema econômico composto por diversas unidades de firma. O desfavorecimento de um agente pode desencadear a desestabilização de todo o sistema, como já visto em crises de repercussão mundial.
Há, portanto, a necessidade de aproveitar a discussão sobre critérios de reconhecimento, mensuração e evidenciação e alinhar interesses dos mais diversificados agentes para qualificar a informação contábil. Alguns aspectos visualizados em Barth et al. (2008) devem ser avaliados: a) a institucionalização das normas, pois a sua adoção efetiva conduzirá à qualificação da informação; b) a ampliação da divulgação de informações relevantes, pois tende a reduzir o conflito de agência, e; c) criação de incentivos econômicos para desenvolvimento da informação contábil, pois dada a natureza utilitarista e racional de cada agente, o incentivo correto para cada um conduzirá a um ambiente informacional mais próximo da realidade.
Barth, M. E., Landsman, W. R. & Lang M. H. (2008). International Accounting Standards and Accounting Quality. Journal of Accounting Research, 46(3), 467-498.
Huizinga, H. & Laeven, C. (2012). Bank valuation and accounting discretion during a financial crisis. Journal of Financial Economics, 106(3), 614-634.
Lopes, A. B. & Martins, E. (2005). Teoria da contabilidade: uma nova abordagem. São Paulo: Atlas.
Sunder, S. (2014). Teoria da contabilidade e do controle. São Paulo: Atlas.
Yamamoto, M .M. & Salotti, B. M. (2006). Informação contábil: estudos sobre a sua divulgação no Mercado de capitais. São Paulo: Atlas.
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